
ALFABETIZAÇÃO










Katia Arilha Fiorentino Nanci
Continuando na esteira de nossa argumentação de que a oralidade e seus recursos mnemônicos (recursos memoráveis, capazes de fazer a palavra ser facilmente lembrada) são importantes para a alfabetização, retomemos que o letramento é um processo no qual a alfabetização está encaixada, e não o oposto (podemos falar muito bem e ouvir muito bem um discurso ou uma história antes mesmo de saber ler e escrever, e não o contrário, como se devêssemos aprender as letras para depois aprender a falar ou ouvir um discurso ou uma história). Leda Tfouni[1] é uma autora/pesquisadora que considera que "existem letramentos de natureza variada, inclusive sem a presença de alfabetização" (p. 79). Assim, há vários diferentes possíveis níveis de letramento; não há linearidade entre ser alfabetizado e ser letrado. Esses conhecimentos são partilhados socialmente, e não homogeneamente.
Se é importante reconhecer graus de letramento em pessoas não-alfabetizadas, sabemos que hoje é também bastante importante saber ler, escrever, atribuir sentido ao que se lê e saber dar sentido ao que se escreve. Saber ler e escrever é um direito, uma ferramenta para outros estudos, uma ferramenta para posicionar-se no mundo.
Para a criança compreender bem a relação entre discursos e leitura gráfica, já vimos em outros textos neste site que a oralidade (aquela que joga com os recursos estéticos e poéticos do texto, aquela que encontramos em toda boa literatura e também nas brincadeiras e narrativas infantis) pode ser bastante explorada com a criança. Podemos dizer que a criança que sabe brincar com a palavra - trava-línguas, revestrés, adivinhas, parlendas, canções etc. -, declamar uma quadrinha rimada, retomar uma história de memória, tem já um grau bastante razoável de letramento, tem repertório na memória, já pode reter modos de encadear no pensamento causas e efeitos. Como passar tudo isso para a grafia, para a escrita?
Sabemos que é preciso explorar a alfabetização em seus detalhes. Paralela e conjuntamente a brincadeiras com palavra, narrativa e poesia em seu formato oral, a criança deve saber bem o nome e o desenho de cada letra, ir sabendo fazer associação entre fonema (sons da língua) e letra. É preciso que a criança possa nomear em voz alta as letras que vê escritas. É preciso também que saiba grafar as letras.
Professores alfabetizadores também sabem que é necessário dominar sílabas. Nossa escrita é alfabética, mas se organiza silabicamente, juntamos vogais às consoantes. As consoantes só 'soam' (com-soantes, só soam 'com') juntamente às vogais. As consoantes são sons que podemos emitir com um certo fechamento da boca: a cada diferente posição de fechamento da boca ou da glote, temos um diferente fonema. As vogais são sons feitos com a boca aberta, podemos prolongá-las bastante, falando um aaaaaaaaaa, mas não podemos falar um 'p' contínuo, podemos falar somente muitos rápidos pppppppp. Um 'pê' só soa estando com uma vogal, ou seja, tornando-se sílaba simples. Também um dígrafo (duas consoantes para um só fonema) 'lh', 'nh', 'ss', 'rr', só soa ao juntar-se a uma vogal, formando-se uma sílaba complexa. Ou um encontro consonantal (duas consoantes para dois fonemas), 'cr', 'gr', também só forma sílaba juntando-se a uma vogal.
Assim, se um professor quer entusiasmar à leitura e escrita a criança que ouviu a História da Coca (vide sessão de vídeos, a 'coca' de nossa história é uma galinha d'angola), pode mostrar para ela um rébus, por exemplo:
+ =
CO CA COCA
Para a criança ir nomeando em voz alta aquelas imagens, ir pegando só o comecinho da palavra (a sílaba inicial) para perceber que a letra C juntando-se à vogal O resulta em CO, e a C juntando-se a A resulta em CA.
Um professor que quer entusiasmar as crianças a ler e escrever pode mostrar a elas muitos rébus que formem palavras com sílabas simples, como SACI, COCA, LOBO, BALA, BOLA. Também pode ir mostrando as variações que temos na constituição da sílaba (C=consoante; V=vogal: V, CV, CCV, CVC, CVV, CVVV). Por exemplo, depois de brincarmos com a parlenda/fórmula de escolha "Lá em cima do piano tem um copo de veneno", podemos formar, palavras com sílabas que só usam uma letra, a vogal:
+ + 9 =
PI A NO PIANO
Ou palavras com o dígrafo rr:
+ + =
MOR RE U MORREU
O trabalho com rébus é bem interessante porque explora bem concretamente esta relação entre som e palavra, além de já na nomeação oral a criança perceber o funcionamento da sílaba (para pegar o primeiro pedacinho de 'morcego' é preciso saber escandir a palavra, falando em voz alta suas sílabas, coisa que, se ensinada, a criança aprende facilmente - as fórmulas de escolha já brincam muito com essa escansão, como ouvimos, por exemplo, na brincadeira A-DO-LE-TÁ). Ainda, o rébus acrofônico mostra que um pedacinho usado aqui pode ser usado ali (o 'pi' de 'pizza' é o mesmo 'pi' de 'piano'). O rébus é como uma adivinha pois, deixando de lado outros pedaços de uma palavra, recorto um pedaço para juntar a outro e assim descobrir nova palavra formada. O rébus remonta, por fim, o nascimento da própria escrita (ver o nascimento da escrita).
Eis que a criança descobre uma palavra que faz parte da brincadeira "Lá em cima do piano", com a qual brincou antes do exercício de leitura com rébus. Ou ela descobre a palavra 'lobo' que faz parte de sua cara história "Chapeuzinho vermelho" ou "Os três porquinhos". Na junção entre o trabalho com níveis menores da língua (letra, sílaba, palavra) e níveis maiores (uma história ouvida, uma brincadeira com palavras) está uma boa alfabetização. Uma leitura que não se restringe à decodificação de letras, mas que, além de decodificar, decifra, ou seja, descobre uma palavra escrita, que lembra um momento de prazer (uma brincadeira, uma história ouvida) retomando um texto inteiro na memória (quando leio 'lobo' posso lembrar de uma história inteira).
O rébus acrofônico é uma possível ferramenta à alfabetização, que vai mapeando o funcionamento da palavra. Há diversas ferramentas interessantes para a aprendizagem da leitura e da escrita, como jogos da memória com imagens, sílabas e palavras, a brincadeira com palavras-valise (dentro da palavra 'repolho' leio um 'olho'), palavras revestrés ('amora' ao contrário lê-se 'aroma') entre outras.
É preciso, nos entremeios deste processo, estabelecer e verificar objetivos claros para a alfabetização, tais como, a criança...
- reter um texto completo na memória, sabendo recontar oralmente uma história inteira ou uma parlenda completa;
- reconhecer, nomear e escrever todas as letras;
- falar, ler e escrever palavras com sílabas simples;
- falar, ler e escrever palavras com sílabas complexas;
- dominar a leitura de palavras sem ter que soletrar ou sem ler com lentidão;
- reconhecer o sentido da palavra ou frase que acabou de ler.
O importante é que a alfabetização tenha como estofo a oralidade estética (níveis maiores da língua, como uma história inteira, um texto integral de parlenda) e não se furte a trabalhar elementos menores (letra, sílaba, palavra). Também é importante lembrar que a criança alfabetizada é aquela que domina completamente o código das letras, ou seja, que saiba ler e escrever palavras inteiras com sílabas simples e complexas, de forma que nese processo já vá tendo um jogo de cintura, um reconhecimento rápido de sentido, para que o prazer do encontro com o sentido da palavra seja mais interessante que a mera decodificação das letras. Assim, sem se deter muito em soletrar, ou seja, lendo a palavra sem lentidão, rapidamente, ficando mais com o sentido, a alfabetização logo está a serviço da ampliação do letramento.
[1] Artigo "A dispersão e a deriva na constituição da autoria e suas implicações para uma teoria do letramento", publicado em 2011 no livro "Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento", de Signorini (org.).