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CRIANÇA E OUTROS CRIANÇAMENTOS

Claudemir Belintane 

 Katia Nanci

 

Raramente a gente, seja de classe média ou classe alta, chamaria um filho de um amigo nosso ou mesmo alunos economicamente bem situados de MENOR.  O termo parece ser reservado para o pobre, para a criança de rua (menor abandonado) ou mesmo para as crianças mais livres que circulam pelos bairros, favelas, roças etc. É como se elas não fossem crianças.

Parece uma coisa inofensiva, mas não é!  Vamos explicar e já polemizar.

Os menores sejam eles abandonados ou não, em geral, são casos de polícia. São tratados - e isso até por profissionais da educação – como destituídos dos elementos mais constitutivos da infância. Como se eles fossem pequenos adultos e estivem prontos para cometer crimes ou envolver-se em situações pouco concebíveis para a inocência da infância.

Contudo, quem trabalhou com crianças pobres, de rua, de favela, de abrigo, sabe muito bem que isso não é verdade. Relato aqui uma pequena experiência vivida por mim na ONG ACAIA, que trabalha com crianças das favelas nas imediações do CEASA (Zona Oeste de São Paulo). A seguir, teremos também o relato da doutoranda Katia Nanci, quando fazia pesquisas para o seu mestrado em uma escola pública da Zona Oeste e teve a oportunidade de conviver por algum tempo com um menino de rua, que fora recolhido por ordem judicial em um abrigo nas imediações da Escola.

RELATO DO CLAUDEMIR

Para cumprimentar as crianças quando eu chegava na ONG, procurava me basear em dois palhaços de circo que me encantaram a infância: Arrelia e Carequinha. Então, eu as cumprimentava arreliamente assim:

- Como vai, como vai, vai, vai?

Elas tinham que responder musicalmente, assim:

- Eu vou bem, muito bem, bem-bem!

Outras vezes eu alternava com Carequinha:  Como vai? Vai bem? Vai a pé ou vai de trem?

O sucesso me dava um passaporte especial e até mesmo entre os mais adultos – sim, aquelas crianças de nove, dez anos que nos assustam nos faróis! Elas também vinham me cumprimentar, não só soavam o sino “bem bem bem”, como respondiam a pergunta do carequinha aqui, dizendo:  “hoje eu vou a pé!” ,  “Hoje eu vou de trem!”.   Mas o mais gostoso era ver o tamanho do sorriso, a ingenuidade infantil explodindo nos olhos.

Outro momento feliz era o de contação de história na biblioteca da ONG. Era fácil observar a viagem das crianças. Suas fantasias não tinham sido roubadas; ali, evocadas pelas contadoras, elas vinham à tona. Lembro-me de um menino que ajudei a alfabetizar, Kenny, que tão logo dominou a leitura, pediu para ler em voz alta. O menino estava apaixonado não só pelas histórias, mas pelo poder da voz que narra.

RELATO DA KATIA

Em 2009, como participante do projeto "ensinando a leitura a partir de diagnósticos orais", pude conhecer e acompanhar um aluno da antiga 1a série de uma escola pública. Antes de começar os encontros semanais com ele, soube que tinha sido morador de rua com os pais, e na ocasião morava num abrigo com outros irmãos e não convivia mais com pai e mãe.  Era um aluno visto pela escola como indisciplinado, resistente ao ensino, considerado pré-silábico pelas avaliações da professora. No primeiro encontro com Thomás[1], também pude sentir dificuldades semelhantes às que haviam me relatado: o aluno não soube escrever seu sobrenome, se cansou das perguntas que lhe fiz, não soube contar nenhuma história de memória, não respondeu às atividades como esperamos que os alunos respondam, saiu andando ou correndo pela sala, jogou lápis e papel no chão. Por outro lado, tinha também se interessado pelas cartinhas do projeto com nomes e imagens do jogo da memória, quis desenhar, disse que queria aprender a ler e escrever, e que não tinha aprendido porque ainda estava na primeira série. Em meio a sua 'fuga' correndo pela sala, viu a imagem do saci num livro e disse 'saci-pererê'. Conto detalhadamente o trabalho feito com o aluno num vídeo neste site, para quem quiser ver mais consulte a seção de vídeos. Aqui, por enquanto, quero ressaltar que durante vários encontros este aluno brincou com trava-línguas como "Troque o trinco e traga o troco", "O rato roeu a roupa do rei de Roma", parlendas como "Cadê o toicinho?", fórmulas de escolha como "Lá em cima do piano", entre outras. Também se encantou com um vídeo sobre o Saci (que levei para assistirmos depois de sua constatação sobre o personagem na capa do livro), com a leitura que fiz para ele de alguns capítulos de "O Saci", de Monteiro Lobato, com o filme "O Saci", um filme antigo em preto-e-branco. Brincou comigo de catar migalhas no chão depois de eu contar-lhe a história do "Pequeno Polegar" e de "João e Maria" -  começou aqui a se intrigar, através da literatura, com a história de uma criança abandonada. Íamos e vínhamos da oralidade às imagens, à leitura e à escrita, e assim Thomás foi se alfabetizando. Mas não só; ele, que no começo não suportava a contenção que o corpo precisa para ouvir histórias, ele que dizia não conhecer histórias, passou a ser um contador de histórias! Um dia começou a contar uma história de Saci, mostrando que tinha guardado na memória um monte de elementos do que tínhamos trabalhado, e mostrando, além disso, que sabia fantasiar, sabia tramar um enredo com começo, meio e fim, sabia usar a palavra de forma estética. Essa história eu digitei e mostrei pra ele, o que virou uma festa! -  o reconhecimento de que estava entrando no mundo das letras, e ainda entrando nesse mundo através da brincadeira com as palavras! Thomás continuou contando histórias e chegou a ler uma delas para a turma, deixando professora e colegas surpresos.

Foi muito especial e gratificante o trabalho com este aluno; o encantamento que ele teve me contagiou, fazendo-me querer saber mais sobre as possibilidades da oralidade como caminho para a leitura e a escrita e vice-versa. E creio que este seja um bom exemplo para verificarmos que crianças oriundas de qualquer meio estão abertas a brincar com palavras e assim chegarem a bons exercícios de letramento.

É sempre bom a gente pensar que criança, seja pobre, rica, de rua, delinquente, é criança sempre, e é essa a nossa grande esperança. Rotulá-las como “menores” é retirar de nosso horizonte a perspectiva de que elas tenham uma infância, de que elas possam buscar em suas fantasias as potências que podem transformá-las para além de qualquer predestinação. Cabe ao educador e ao cidadão cultuar o “criançamento” para além das diferenças, para além das classes sociais.

 

[1] Nome fictício.

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