
FUI BUSCAR INFÂNCIA E ACHEI INFÂNCIAS!
“Infância” é também o título de uma das melhores obras da literatura brasileira, assinada por Graciliano Ramos. Neste livro, o narrador rompe com o jogo presente-passado na tentativa de fisgar com palavras o peixe fugaz de sua infância. Temos aqui, então, um exemplo interessantíssimo que nos implica, nós educadores que lidamos com algo a que chamamos “infância”. Graciliano é reconhecido em sua fortuna crítica por uma certa obsessão diante dabusca da “verdade”, mais precisamente em razão de sua luta contra a palavra fácil, a verborragia dos discursos que eterniza o imaginário da dominação. Em “Infância”, o escritor procura as verdades de seus primeiros anos, usando como ferramenta a escrita, a narrativa, mas com a vigilante consciência de que tudo é fugaz e muito difícil de recompor. De fato, a memória não é um dispositivo de imagens e palavras fixas, pronto a ser evocado em sua pureza.
Freud, em muitos de seus escritos, inclusive na Interpretação de Sonhos, vê o sistema de memórias como camadas que se sucedem, como um sítio arqueológico de uma civilização: no fundo há os vestígios de um antigo povo, cuja vida e cultura foram soterradas e sobrepostas por outra(s) - como os acadianos sucedendo os sumérios; ou ainda, os europeus plantando
cidades sobre civilizações americanas: espanhóis em cima dos astecas, incas e maias; portugueses sobre tupinambás e outras etnias. Por mais que o novo tape o velho, vestígios que incomodam sempre persistem, demandando reescritas – aliás, essa é a função mais nobre da escrita!
Quando queremos saber das memórias da infância ou das civilizações soterradas, temos quereinterpretar os fragmentos que vamos conseguindo com a prospecção via imagens e palavrasou então com a escavação. O arqueólogo trata cada objeto que encontra com muito mimo edelicadeza, pois sabe que qualquer alteração na ordem, na remontagem da peça, pode prejudicar muito a sua antiga condição. Já nós, quando não estamos preparados para buscar a infância, aceitamos as imagens de acordo com a fantasia que a gente vai fazendo da gente mesmo – e o pior, essa fantasia é meio genérica, meio de todo mundo, sem originalidade.
Já um trabalho como este de Graciliano... Ah, isso sim é prospecção, busca verdadeira! Notem que a verdade não está na releitura que se faz do que se encontra, mas na justeza da busca. A verdade que o velho Graça busca é esta: a pesquisa com a verdade de suas palavras, ainda que para isso seja necessário repisar dolorosamente velhos mitos, por exemplo, a paternidade e a maternidade:
- a mãe: ... uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus, que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. (p. 30)
- o pai (após o menino ter sido surrado injustamente, pois o pai achava que ele era responsável pelo sumiço de um cinturão, que na verdade o próprio pai havia deixado dentro da rede onde dormitava, segue-se esta reflexão): Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando e espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra. Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça. (p. 49)
A infância que o escritor luta para encontrar é fugaz, difícil de recompor, marcada por passagens duras, que exigem coragem na prospecção, na busca. Esse é o trabalho do grande escritor, buscar o “tempo perdido”, o passado soterrado, mas indo além do imaginário fácil, da busca de ideais.
Tomando o termo “infância”, por outro lado, pelo lado mais capitalista, mais pragmático, podemos encontrar profissões que se organizam em torno da venda de produtos para crianças. Esses também pesquisam essa mesma coisa chamada infância, tentam apurar a verdade deles: como as crianças podem consumir mais? Como podemos aumentar a venda de doces, brinquedos, jogos, tablets, diversões para esses pequenos? Como podemos fazer programas de TV em que elas possam se divertir e ao mesmo tempo consumir mais e mais?
Como podemos ganhar milhões a partir dos pequerrutchos? Sem dúvida, temos aqui também uma ideia de infância, que parte da cabeça de adultos, e certamente suas infâncias soterradas na memória também se implicam nessa busca – uma infância que se tornou capitalista, que virou mercadoria! Temos até um paradigma da propaganda intitulado “do útero ao túmulo”,
ou seja, a intenção é infundir marcas desde os alimentos e planos e bancos e finanças que a família deve assumir durante a gravidez da mãe aos seguros, planos e medicinas para morrer feliz (como diria João Cabral de Melo Neto, “Essas profissões que fazem da morte/ofício ou bazar”).
Em nosso campo, também nós lidamos com uma ou mais ideia(s) de infância. Quando um(a) professor(a), ao esquadrinhar sua turma, encontra infâncias decentes, boas, incríveis (“príncipes”, como dizia uma professora que conheci) e as contrapõe às infâncias ruins, complicadas, irrequietas, resultados de famílias desarrumadas, pobres, mal formadas, também não está fazendo o seu (pré) conceito de infância? Será que esse modo de pensar e de esquadrinhar a turma não implica a infância vivida pelo (a) professor(a)? Que infância é essa?
Como a educação se sobrepôs a essa infância? Como os traços dessa infância se imprimem sobre as crianças reais que estão ali esquadrinhadas na turma?
Difícil esse conceito, não?!
Talvez uma forma de apalpar a infância um pouco mais é deixar o conceito mais aberto, mais para que se refine a cada situação vivida. Ah, mas pra isso seria muito bom o(a) professor(a) cuidar de sua infância, de seu menino, de sua menina! Prospectar um pouco mais seu passado, buscá-lo corajosamente como fez o velho Graça. Podemos começar lendo o livro “Infância” e outros sobre esse período da vida (“Cazuza” de Viriato Correa; “Doidinho” de José Lins do Rego; “As palavras” de Jean Paul Sartre; a maravilhosa coletânea de contos organizada por Dinorah do Vale, “Criança brinca, não brinca?” e tantos outros). Depois, dar um passo importante: escrever suas memórias, buscar sua criança perdida – esse é o exercício fundamental de nossa profissão.
Bem, mas alguns traços talvez possamos tirar dessa civilização perdida chamada infância; vejamos:
- O que nos fascina nas crianças é esse pendor poético e fantasioso, ou seja, como ela lida despretensiosamente com a fantasia. A diferença entre lidar com a infância enquanto ela está sendo vivida (a criança lidando com seu tempo e seus acontecimentos) está em fazer as coisas pela primeira vez, de modo adâmico, sem pretensão, nem intenção. Por exemplo, uma cena que usei em um outro artigo sobre infância: um menininho alegre com o carrinho que ganhou da tia, o Macqueen, olha para sua cachorra e diz:
- Luna, olha o Macqueen!
Essa personificação (prosopopeia) inusitada e pura é um dos traços essenciais da infância, ou seja, essa capacidade de lançar mão da fantasia, não para vender um produto, não para exemplificar alguma coisa como faço agora, mas gratuitamente, bestamente, puramente. Isso me parece ser a essência da infância. Entrar na língua e na linguagem sem a roupagem do
tempo acumulado. Viver sua fantasia sem instrumentalizá-la.
Outro elemento incrível que daria pra gente aceitar bem é essa busca de Graciliano e de outros artistas quando tentam fazer a prospecção com a força da verdade. E, claro, a sua, professor(a), quando sua prospecção romper com o imaginário fácil da vida.
Achamos que tendo essas referências em mente, ninguém precisa de um conceito, de uma definição única. Que o conceito seja como o conceito de memória de Freud, sempre reescrito e reelaborado em função de novas buscas, de novas experiências.
Ah, a busca de minha infância, meu memorial – pra quem quiser conhecê-lo basta clicar aqui.