
O QUE É UMA LETRA?
A pergunta “o que é uma letra?”parece bem simplória, pois poderia receber uma resposta óbvia tanto de um profissional formado em “letras” como de um pedagogo especialista em ensinar as primeiras letras. Essa resposta poderia ser algo como: “letra é cada elemento gráfico que entra na composição da escrita” ou “representa a emissão sonora de um fonema da voz humana” ou ainda “elemento capaz de representar visualmente a voz e o pensamento do homem”. Claro que cada uma dessas ou de outras respostas trazem sempre novas perguntas: “Mas o que é representação?” “Como a letra representa a voz?” “Em todos os sistemas de escrita, a letra representa a voz?” “Desde quando a letra representa a voz?” “Quais operações mentais estão por detrás da decodificação das letras?”
Tais perguntas podem se abrir ainda mais e nos fazer perder o foco. Abordaremos aqui as que interessam mais à nossa posição de profissionais da letra, do ensino da escrita, da leitura e da produção de texto.
COMO NASCERAM AS LETRAS?
Como educadores que somos, é interessante desdobrar essa pergunta em no mínimo quatro campos de pesquisa para depois abrir possibilidades de estudos para cada um deles: (1) Nascimento na História (filogênese) - existe uma História da Escrita que tenta buscar as origens da(s) escrita(s) e das diferentes formas de representação e de letras que já existiram e que ainda existem; (2) Entrada da criança na escrita (ontogênese) - quando e como a escrita nasce para uma criança, ou seja, como a criança aprende a ler e a escrever? (3) A letra na comunidade - é possível indagar também sobre o nascimento da letra, da escrita, em uma comunidade X (quando e como o povo tal teve contato com a escrita? que escrita era? como reagiu? o que ganhou? o que perdeu?); (4) A escrita em nosso tempo - como a escrita é utilizada em nosso tempo, em nossa cultura? quais são suas funções? que meios e suportes são utilizados em seus diferentes modos de expressão? como ela é ensinada?
Para alguns pesquisadores, entre eles Lacan, a essência da escrita já está presente na cultura humana desde sempre. O simples fato de o homem “ler” sinais na natureza já revela certa prontidão para a habilidade de encontrar algo “ausente” a partir de um traço, de uma pegada, de um rastro. Imagine um caçador pré-histórico examinando vestígios da passagem de algum animal e, a partir da leitura desses sinais, inferir várias informações: que animal que passou por ali, se era grande ou pequeno, se pastava tranquilamente ou se estava em fuga, há quanto tempo passou, se ainda seria possível alcançá-lo. Podemos também imaginar nossos primeiros agricultores lendo os sinais da natureza para saber se é época de plantar ou de colher.
Outro ponto interessante e não menos antigo é o hábito de enfeitar o corpo (de usá-lo como suporte de expressão) com tatuagens, escarificações, penduricalhos, plumagens. Sempre houve uma “escrita” dedicada ao corpo, que a civilização ocidental recalcou, reprimiu, mas que já há algum tempo ressurgiu de forma muito vigorosa: a tatuagem, o piercing, as incrustações e outros elementos expressivos estão presentes em nosso cotidiano.
Outra expressão interessante dos homens em geral é a dança, sobretudo a tribal, coletiva, ritualística – veja aqui a dança da Aruanã, praticada pelos índios Javaés (Ilha do Bananal). Nela se entrecruzam vozes, cantos e movimentos corporais, dando como resultado uma “escrita”, que impressiona tanto o grupo tribal como os espíritos.
Além dessas incríveis vocações para a leitura e a expressão, podemos sempre pressupor que se o homem risca, desenha, corta e enfeita o seu próprio corpo, o mesmo ele pode fazer em alguma outra superfície externa. Em um couro de animal, no casco de uma tartaruga, em um pedaço de madeira ou argila, nas paredes de uma caverna. Do mesmo modo que a linguagem
humana expressa as coisas do mundo externo e interno reduzindo-as a signos (sonoros ou visuais), esses sinais que o homem pode fazer em uma superfície externa também serão reduzidos a signos. Se ele toma, por exemplo, somente a cabeça de um animal para representá-lo, estará se valendo dos dois elementos fundamentais da linguagem: a habilidade metafórica, pois tenta registrar traços do animal que quer evocar a partir de um jogo de semelhança (desenho); a habilidade metonímica, toma a parte pelo todo: a cabeça, a pata ou os dentes pelo corpo todo. Por exemplo: a cabeça do boi na escrita dos fenícios acabou se transformando na nossa atual letra A. Veja abaixo o jogo metafórico-metonímico no desenvolvimento de algumas letras cuneiformes:
(1) AS ORIGENS NA HISTÓRIA - FILOGÊNESE (FILO = RAÇA, ESPÉCIE; GÊNESE = NASCIMENO, ORIGEM
QUE LETRAS SÃO ESSAS, HEIN?

Claro que, na língua falada, essas coisas do mundo também são evocadas coletivamente a partir de emissões sonoras, de um processo de nomeação, acompanhado quase sempre por gestos ou por imitações corporais. Imaginamos sempre que nesses primórdios a pantomima era a regra. Mas podemos imaginar também que a expressão fora do corpo, em alguma superfície externa, em seu silêncio, também prosseguia rumo a uma linguagem própria, a uma escrita. Como se pode ver na ilustração, facilmente essas pinturas podem virar pictografia e ideografia. Um desenho mais estilizado, posto à mostra para designar o próprio objeto ou outras coisas a ele relacionadas por traços metonímicos, por exemplo: o disco solar na escrita hieroglífica dos egípcios, além de ser o pictograma para sol, poderia também significar “dia”, “claridade”, “tarefas do dia”. E, ainda, quando perde a semelhança com a coisa representada, transforma-se totalmente em letra abstrata – como são as do nosso alfabeto.
A homofonia é outro fenômeno muito interessante e produtivo no surgimento da escrita. Devido, talvez, às próprias limitações do aparelho fonador e da audição, uma palavra pode ficar muito semelhante ao som da outra. Em português, temos muitas: mato (vegetação) – mato (verbo matar); sede (necessidade de água) – cede (verbo ceder) – sede (casa ou local principal: sede da fazenda). Ainda hoje se lança mão desse fenômeno para criar um símbolo, uma logomarca, por exemplo, pode se desenhar estilizadamente uma cobra para ser a logomarca de uma agência de cobrança. Posso ainda dizer que os funcionários da agência são cobras no que fazem.
Imagine que um escriba antigo quisesse escrever um objeto novo ou então um nome próprio, um sentimento humano e se via embaraçado para desenhá-lo, mas, de repente, ele percebia que o som desse nome era parecido com o de um pictograma ou ideograma que ele já tinha na coleção. Por que não usar esse ideograma para designar também o novo? Essa talvez tenha sido a situação do escriba chinês que precisava criar um ideograma para a palavra “long” (surdo, surdez). Em vez de criar um novo, percebe que ele já tem um ideograma para um som semelhante, só que designando o significado “dragão”. Bem, ele poderia simplesmente repetir o ideograma, mas daí vem a dúvida: como saber se se trata de “dragão” ou “surdo”, ou seja, como distinguir um do outro. Aí vem, então, o “pulo do gato” chinês, que consiste em pôr um outro ideograma para indicar de que significado se trata. No caso, nosso escriba acrescenta o ideograma “orelha” ao ideograma “dragão”. Dragão mais orelha deixa de ser dragão e passa a designar a pessoa surda:
+ =
(dragão) (orelha) (surdo)
Este recurso foi muito usado na escrita chinesa e também em outras escritas mais ideográficas, como a egípcia.
O fenômeno da homofonia resultou em outro, que ficou conhecido como “rébus”, que, em latim, significa “da coisa” ou “da imagem”. O uso de um ideograma ou de uma imagem para significar outra coisa para além do que designa a imagem é a essência desse fenômeno. Por exemplo, o decifrador francês Champollion só avançou na decifração da escrita dos egípcios quando resolveu assumir a ideia de que aquelas imagens também podiam designar sons, ou seja, que podiam funcionar como rébus. O primeiro hieróglifo egípcio a ser decifrado foi o nome do Faraó Ramsés, quando o decifrador resolve supor que o disco solar que inicia a palavra poderia ter o som “ra”, que em copta (suposta língua dos antigos egípcios) é o som para designar “sol”. Então, o “RA” inicial de RAMSÉS (o som mais aproximado seria [rameses]) de fato era o som do disco solar. Daí em diante, aplicando o princípio do rébus para nomes conhecidos, o francês foi chegando ao funcionamento da escrita sagrada egípcia (em grego, “hieros” = sagrada; glifos ou grifos = letra, escrita). Veja a imagem:
Cártula de Ramsés, com o disco solar ocupando a posição acrofônica, sendo usado como um rébus, ou seja, com seu valor sonoro “rá”.
Notem que partindo da coisa em si, um animal, um objeto, cujo nome precisa ser comunicado ao coletivo, fomos para a representação no corpo (dança, grafismo, tatuagem) e fora do corpo (pedra, couro, casca de tartaruga, argila). A representação passa da imagem para a letra (pictogramas e ideogramas) e começa a se refinar com a homofonia e o princípio do rébus. Entretanto, é sempre bom lembrar que por detrás de cada letra do nosso alfabeto mora uma corporalidade perdida, uma imagem perdida. Não é por acaso que a criança ainda não alfabetizada insiste em atribuir valor de imagem à letra. Não é por acaso que elas ficam impressionadas ao ver alguém que sabe ler arrancar uma voz de um conjunto de sinaizinhos inertes.
Neste site, você encontrará mais textos que vão detalhar o surgimento e o funcionamento das escritas silábicas e do alfabeto.
Vamos para o item 2, pensar sobre como a letra nasce para a criança.
Em geral, as crianças contemporâneas, sobretudo as do mundo urbano, já nascem envolvidas com as tecnologias informacionais, cujos equipamentos não deixam de figurar como suportes de letramento. Desde a babá eletrônica, que repete a voz da mãe ao lado do berço para substituir o momento das cantigas de ninar, ao tablete, que é posto no cadeirão do restaurante para que a criança deixe os pais comerem em paz. Claro que, nesse contexto, há também oralidade, cantigas e brincadeiras presenciais, leituras em voz alta, curtição das páginas de um livro em família e tantas outras possibilidades.
Em meio a tanta parafernália, a criança vai presenciando esses estranhos rabiscos, que, na página ou mesmo na tela, rivalizam ou se harmonizam com desenhos e filmes. Quando instada a interpretar um trecho escrito, em geral, tenta atribuir à letra alguma coisa da imagem. A tentação de lê-la como se fosse uma imagem vai persistir por algum tempo. É claro que em cada lar, em cada cultura, a interação com os pais em torno dessas coisinhas estranhas (as letras) vai dando cada vez mais sentido ao contexto. Se a criança estiver em uma escolinha infantil, ou mesmo creche, que se anima a cultuar a oralidade ali conjugadinha com a escrita, a criança vai enriquecendo cada vez mais essa ambiência de vozes, gestos, livros, filmes. A letra vai engordando sua presença neste meio e aí abrem-se as possibilidades de a criança se entusiasmar e gestar uma subjetividade mais afeita ao jogo da letra nessa ambiência toda. Essa criança mais entusiasmada, já posicionada para a escrita, em geral, é também aquela que aprende a ler sem dar muito trabalho às professoras.
Mas, há meios e situações não tão propícios assim. Seja em uma família desorganizada ou mesmo em uma bem organizada, surpresas sempre podem advir e gestar-se aí um certo posicionamento subjetivo não muito favorável aos mistérios da letra. E é aí que entra o bom educador, é ele que pode servir de “ponto de giro” para a criança mudar de posição.
Como dissemos no link “letramento”, a escola é a agência de letramento especializada, portanto, sua grande vocação deveria concentrar-se na lida com as dificuldades e não apenas na ênfase ao aluno que traz grande bagagem de letramento de sua família. É a partir das dificuldades e da compreensão das diferenças que de fato podemos pensar na professora como uma especialista no ensino das letras.
Lacan usou a passagem bíblica para introduzir essa discussão que opõe mundo real (mundo das coisas) e mundo interno. A letra, em sentido amplo (tanto para a escrita como para as próprias unidades de representação da língua), de fato mata, pois a primeira operação que executa é tirar o mundo vivo, o mundo real, do sistema de representação. Tudo o que falamos, pensamos ou sonhamos nada tem do mundo real. Uma vez na palavra, uma vez no sistema de representação, o objeto real está morto. Se pronuncio a palavra “pedra”, sabemos que o conjunto significante não faz menção direta ao mundo real, apenas evoca na memória do outro o seu sistema linguístico no meio do qual se encontra esse signo, já totalmente repassado pela experiência desse outro. Mesmo que meu interlocutor aponte uma pedra concreta com o dedo, a imagem dela que penetra meu psiquismo não estará livre das minhas memórias anteriores que a contextualizam – imagine se, pouco antes desse momento, eu tivesse utilizado uma pedra para assassinar alguém?! Que pedra é esta? A pedra mineral que jaz inocente no chão ou a pedra que atravessa a minha experiência e se abre em contextos significantes?
Aqui já temos uma divisa importante para compreender o funcionamento da escrita: tanto ler como escrever não significam grafar ou extrair a realidade do mundo a partir do uso preciso das letras. Tanto uma como a outra constituem mediações e, como tal, precisam ser interpretadas e ressignificadas levando em conta o modo como são engendradas, compostas. Se leio o editorial de um jornal, tenho que tomar como premissa que há um modo de produção, uma elaboração que põe em jogo o sujeito e o contexto histórico e psicológico dessa produção.
Do mesmo modo, a letra alfabética mata a fala real. Ler é sobretudo usar as experiências da língua para abandonar o modo prosaico de seu uso e reinventar um outro modo, mais controlado, mais medido, mais distanciado. Sabemos que antes da existência da escrita, em qualquer cultura, o que prevalece é a oralidade (ou, como costumamos dizer, corporalidade), é a partir da estética, da narrativa, que as comunidades ágrafas preservam suas memórias. Com a chegada da escrita, paulatinamente, toda a riqueza do oral acaba passando para a escrita e matando o “corpo”, o cantador, o rapsodo, o contador. A escrita silencia os corpos. Aliás, ler, por si, exige postura silenciosa. Talvez seja por isso que na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental a corporalidade joga um papel primordial.
Vemos nas escolas de hoje milhares de crianças irrequietas, que correm dentro das salas, que não conseguem sossegar o corpo e que também não aprendem a ler. Elas parecem sustentar uma espécie de antítese em relação ao que a escrita exige - corpo disciplinado, postura, silêncio, concentração. E, claro, a criança, até pode assumir essas exigências, mas em troca também demanda alguma coisa: amor e admiração da família em primeiro lugar, amor e admiração dos outros, diversão para si mesma, engajamento nas narrativas, jogos e brincadeiras com um herói, prazer no jogo com as palavras. Se essa equação não estiver equilibrada (o que se exige e o que se demanda), dificilmente a criança aceitará o mortal kombat da escrita. Infelizmente existe de prontidão a indústria farmacêutica e um médico para tratar tudo como doença, TDAH, e a medicação entra no lugar da educação.
Muitos repentistas, poetas populares e compositores analfabetos chegam a temer o contato com a escrita, com as letras, apesar de saberem o quão importante é ver seus textos publicados e indo circular longe de suas localidades. O temor explica-se e até pode ser entrevisto também em poetas que aprenderam a ler e a escrever (Patativa do Assaré, Zé da Luz e outros), pois sabem esses criadores que as suas criações nascem da oralidade, de um trabalho a partir de uma estética do oral: a musicalidade, o ritmo, a rima, a repetição, a modalidade da estrofação (sextilhas, quadra, quadrão, martelo). O poeta e o compositor popular têm suas matrizes e delas procuram não fugir. No caso dos cantadores e compositores, o ritmo da viola, a batida num pandeiro, ditam a métrica, o tamanho e o ritmo do verso. Para eles, a escansão do poema, que tanto trabalho dá aos alunos quando aprendem poética, é algo natural, faz parte do próprio processo da composição.
A mesma resistência acontece em comunidades inteiras. Apesar de seus líderes chegarem a admitir a importância da escrita para entender melhor os “brancos”, “os da cidade”, “os da elite”, a predisposição nem sempre os favorece. Daí a bela sacada de Paulo Freire, que tenta diluir esse conflito buscando tecer um laço entre o que se vai ler e a memória local, a memória pessoal. Para favorecer a entrada de uma sociedade ágrafa ou semiágrafa na escrita, é preciso resgatar as memórias locais, mostrar a seus participantes que suas histórias, tradições, jogos, narrativas são dignas e podem ganhar corpo e relevância na escrita. Na alfabetização de adultos, esse jogo é fundamental. Com crianças pobres, de lugares distantes ou mesmo das periferias das grandes cidades, é sempre necessário (re)equilibrar essa equação. A oferta da escrita precisa ser ajustada à valorização do mundo local, da cultura local e, ao mesmo tempo, promover o encontro entre o local e o universal.
Do mesmo modo que a oralidade no mundo antigo, no moderno/contemporâneo, a escrita associa-se ao poder. É com ela que se escrevem as leis e a partir delas é que se gestam os poderes dos políticos, dos juízes, advogados e outros profissionais liberais. Por baixo dela, sem compreendê-la, submetido por camadas e camadas de mediadores burocráticos, estão as classes desfavorecidas. A escrita as distancia de suas causas, incrimina-as, submete-as, sem que elas sequer compreendam o que está acontecendo. Um exemplo claro ocorre quando a polícia chega na favela:
- Sua carteira de identidade? Nome, endereço, profissão!
Não adianta responder “sou o Dito da dona Luíza do seu Tião” , como é de costume. Tampouco afirmar “moro na comunidade, quarta viela, na beira do corgo do Sapé”, nem mesmo dizer que sua profissão é “catar papel com o carrinho de mão”. Seja a polícia, seja em uma loja, a pessoa é obrigada a se submeter a estas e outras demandas do mundo da letra: dizer o nome completo e comprová-lo no escrito (RG, CPF); na loja, deve levar o comprovante de endereço (um recibo de água ou luz), preencher (ou ditar para alguém preencher) formulários, assinar contrato de financiamento, comprovar trabalho com carteira assinada ou holerite. Tudo isso o imigrante tem que aprender para fazer o mínimo na cidade grande. A submissão é total e, claro, com ela um certo mal-estar.
Não é por acaso que quando seus filhos vão à escola, alguns significantes desse penar, dessa mágoa retida, vão junto com a criança. Além disso, ela, lá na escola, não terá a mesma liberdade que tem nas vielas tortuosas da favela ou sob os tetos dos barracos quando empina pipas livremente. Na escola, é a ordem da professora, a fila, a carteira para imobilizar-se, linhas de caderno para conter a escrita, livros para ler de acordo com o que a professora espera.
Resumindo: a escrita é campo de conflitos e não apenas de soluções. Para introduzi-la em ambientes complexos, em salas heterogêneas, é preciso cautela, projetos especiais, trabalho coletivo, estratégias diversificadas. A escola, em seu funcionamento normal, com um professor por sala, mesmo que tenha excelentes diretoras, coordenadoras e professoras, está fadada ao fracasso. Se quisermos de fato incluir a criança pobre, da periferia em um universo de letramento verdadeiramente promissor, temos que conhecer profundamente essas crianças, suas demandas, seus temores, seus modos de se posicionarem subjetivamente diante da escrita.
O Brasil iniciou seu processo de universalização do ensino básico somente a partir da década de cinquenta. Quando o grande contingente da população brasileira começa a se escolarizar, a com/coo/corrência do sistema alfabético já estava acirrada. Rádio, cinema, discografia, televisão e, nas últimas décadas, as tecnologias digitais com sua parafernália de consumo e entretenimento. Diferentemente de boa parte dos países europeus, que traz sua escolarização – mesmo que ainda não totalmente massificada em termos de ensino universal e gratuito – desde o século XVIII e XIX, quando o livro, a literatura, as ciências, tinham a escrita e a matemática como sistemas exclusivos de mediação, tanto para adquirir conhecimento como para a diversão. O que quero dizer é que a nossa criança, desde sempre, em sua família, não contou e não conta com essa aura magnífica e exclusiva do livro e do alfabeto. Se levarmos em conta o processo de urbanização, que transferiu muita gente da zona rural/do sertão para as cidades, e sobretudo para as capitais, podemos perceber que esse movimento tem o rádio, o cinema e a televisão como mídias de entretenimento e de informação. A leitura, mesmo a do jornal popular, era e ainda é bastante restrita. Não é por acaso o sucesso dos programas de rádio com temáticas e músicas rurais desde o início de sua existência. O brasileiro dos interiores chegou às grandes cidades pelas ondas da rádio, ouvindo música e sotaques de suas origens. No cinema, o cineasta e ator Amácio Mazzaropi arrastava multidões para ver seus filmes nas décadas de sessenta e setenta. As duplas caipiras, os cantadores e grupos musicais do Nordeste nutriam o caipira e o sertanejo nas cidades com o imaginário de suas origens (a vida no sertão, a natureza, a justiça, os valores). A literatura, que nos séculos XIX era febre na Europa, aqui ficou bem restrita a uma parte da população escolarizada. Devemos lembrar que até a década de 50, mais da metade da população brasileira não sabia ler e que mesmo a marcante expansão da oferta de ensino, que vai culminar em meados da década de noventa, com praticamente 100% de crianças na escola, não conseguiu de fato tornar o alfabeto uma ferramenta eficiente para todos, como ainda hoje mostram as avaliações nacionais e internacionais. Segundo as avaliações da Prova Brasil de 2013, sessenta por cento das crianças que terminam o Fundamental I não dispõem de nível de leitura suficiente para prosseguir seus estudos. Os dados de alguma maneira batem com os do PISA (Programme for International Student Assessment – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) de 2003 (dez anos antes), extraído da população jovem (alunos de 15 anos): 56% ficaram abaixo do nível mínimo de proficiência em leitura. Ou seja, mais da metade (próximo de 60%) não é proficiente, não teria condições de progredir em seus estudos.
Vejam, então, que o uso da tecnologia do alfabeto é um grande problema, tanto para as crianças e jovens de hoje como para as/os do passado (anteriores à década de oitenta), que eram reprovada(o)s e se evadiam da escola. É preciso levar em conta que nos dias de hoje o alfabeto tem muitos concorrentes. A nossa criança, sobretudo as mais pobres, vão encontrar, em seu universo de letramento, mais atrativos fora do livro e da escrita: televisão (que também se universalizou), celular, tablet, videogames
.
A escrita de hoje, para essa população herdeira de comunidades pouco escolarizadas, acontece na Internet, na TV, na forma de letras dinâmicas, que ganham movimento, que expressam com seus significantes a forma de produtos para o consumo (o S de sadia escrito com salsichas, o M de MacDonald’s escrito com batatas fritas, marcas de chicletes com letras fofinhas e estofadas), ou, ainda, em letras que bailam e cantam nos programas de TV e mesmo na Internet. Tudo isso parece sugerir que aprender a essência da letra, sua função, seu jogo na leitura não é tão relevante como no passado. O que a escola oferece, a escrita na lousa, no caderno, fria, estática, figura para a maioria como algo desagradável de aprender.
Receber as crianças na escola, ofertar a elas a magia das letras dos livros, encontrar um modo de diminuir as diferenças, contemplar a diversidade, promover encontros entre oralidade/corporalidade e a escrita em seus suportes contemporâneos tem sido a luta do GOLE.
Nesses anos de pesquisa, preparamos e desenvolvemos muitos materiais interessantes, considerando sempre esses conflitos. Entre na página PRÁTICA, que você vai encontrar muitos materiais interessantes, feitos para encantar, reencantar e ENTUSIASMAR crianças de todas as classes, de todas as regiões. Entusiasmar é nossa palavra-chave nessa luta.
Se quiser um aprofundamento sobre a LETRA e seus efeitos durante a aprendizagem da leitura e da escrita, leia o capítulo III de meu livro “Da corporalidade lúdica à leitura significativa: subsídios para a formação de professores”, Editora Cengage (PRELO).
A HOMOFONIA (HOMO = SEMELHANÇA; FONIA = SOM)



OUTRO FENÔMENO FUNDADOR: O RÉBUS (RE ou RES = coisa; BUS = de ou da)

RESUMINDO
(2) A CRIANÇA ENTRANDO NA LETRA (ONTOGÊNESE)
A LETRA MATA, O ESPÍRITO VIVIFICA
LER É SOBRETUDO MATAR E RESSUSCITAR A FALA PROSAICA
LUTA DE VIDA E MORTE ENTRE A LETRA E O CORPO
(3) A COMUNIDADE EM LUTA CONTRA/PELA (A) ESCRITA
(4) MEIOS E SUPORTES CONTEMPORÂNEOS: A ESCRITA IRREQUIETA
COMO REENCANTAR A LETRA ESCOLAR?