
ENTUSIASMO (do grego ENTHEOS - ter um deus dentro de si, inspiração de origem divina)
Sensibilizar-se com o entusiasmo das crianças ao abrirem as páginas de um livro de histórias e contemplá-lo como quem quer penetrar nas aventuras dos personagens é motivar-se e mobilizar-se para que a literatura infantil tenha um amplo espaço e presença garantida nas salas de aula. Os olhos incólumes que fitam as imagens do livro e se concentram ao máximo para ler as palavras que se disfarçam em cenas de amor, de ação, de mistério, e até mesmo de desgraça, nos mostram sua pura intuição à fantasia e nos instigam a lutar pelo direito à literatura infantil.
Ao defender a literatura como um direito humano, assim como a alimentação, a moradia, o emprego, Antonio Candido (2004) apresenta-nos um conceito preciso de literatura como forma de ordenação do caos no mundo, como objeto artístico e estético indispensável ao ser humano e à formação de cultura e comunidade. A literatura, por meio de metáforas e de narrativas fantásticas, é capaz de formular
elementos aceitáveis em resposta às indagações sobre a vida e a morte que nos atormentam a mente, sobre questões e explicações que, sozinhos, não somos capazes de elaborar, aceitar ou com as quais não conseguimos conviver. Por isso, quando falamos de literatura em sala de aula, é importante tomar cuidado em não reificá-la, esquecendo-nos de seu caráter subjetivo.
Em nossa abordagem sobre a literatura infantil, buscamos pensá-la, portanto, como um direito das crianças à fruição de todas as criações de toque narrativo, fantástico e poético. A literatura nos ajuda a viver, nos ajuda a lidar com a morte, com as perdas, com a vida e sua extensão, põe o sujeito no mundo e estabelece laços profundos do sujeito com o mundo. A literatura ajuda no estabelecimento de vínculos, do sujeito consigo mesmo e com os outros. Sem a ficção, sem a literatura como formação dos seres humanos, não damos conta de compreender a complexidade da vida, por isso ela se torna um direito.
Compreendido isto, devemos explorar as contribuições do campo da literatura infantil para a formação de professores do Ensino Fundamental e seu trabalho em sala de aula. No entanto, este campo ainda é pouco estudado, valorizado e conhecido, inclusive pelo fato de que as diretrizes governamentais impõem às escolas o uso de textos do cotidiano e gêneros publicitários para o ensino da leitura e escrita.
A ideia de que a literatura infantil deve estar presente no ensino da Língua Portuguesa e ser agente de conhecimento ainda é pouco difundida entre nossos pares, diretores e coordenadores que pensam o projeto político pedagógico das escolas. Isso se deve também ao fato de que a valorização da literatura infantil só passou a ser considerada a partir do momento em que o conceito de “infância” ganhou espaço na sociedade contemporânea. Mesmo assim, ainda encontramos dificuldade m desvencilhá-la tão somente de um arcabouço pedagógico no qual ela se encontra (junto a uma finalidade pragmática) e passar a enxergá-la como arte.
O entendimento do caráter subjetivo da literatura infantil e do direito de todas as crianças terem relação de fruição com a arte é condição para que consigamos romper com a tendência escolar de instrumentalizar a literatura e didatizar as experiências das crianças com a estética literária. Além de se pensar a literatura infantil em sua função de construir objetos autônomos com estrutura e significado e de pensar a literatura como manifestação de emoções e visões de mundo dos indivíduos e grupos, Candido (2004: 176) explicita uma terceira função da ficção criada pelo e para o homem: a literatura como forma de conhecimento (do mundo, do outro, de si mesmo), inclusive como incorporação difusa e inconsciente, e isso vale também para a criança. Isso não significa que devemos afastar a literatura infantil da sala de aula já que não queremos instrumentalizá-la, pois, quando compreendemos a literatura infantil em sua função formadora, muito diferente de uma suposta “missão pedagógica”, conseguimos pensar em uma aproximação não doutrinária e sim emancipatória entre sujeito e arte.
Com base nessa terceira face da literatura infantil, podemos pensar na apropriação que as crianças fazem das histórias que trazemos para a sala de aula. No início de sua formação enquanto leitores fluentes e autônomos, a escolha que fazemos dos textos que irão compor o repertório da turma deve ser cuidadosa e responsável, já que é também na literatura e nas histórias ouvidas que a criança busca se identificar e compreender sua existência. Ela precisa se reconhecer no outro pela diferença (na relação de alteridade), mas também precisa se reconhecer pela semelhança e, quando não se sente representada nas narrativas dos textos literários e/ou na composição do material didático e de suas propostas, não se encontra e não se sente parte desse processo. Por isso, acreditamos ser de suma importância a diversidade de histórias que serão contadas e trabalhadas em sala de aula, para que se contemple a diversidade cultural e social de nossas crianças, bem como as regionalidades de nosso país.
Com isso, queremos dizer que apesar da imensa riqueza que encontramos na literatura infantil universal com os contos de Perrault, de Andersen e dos irmãos Grimm, por exemplo, e com a mitologia grega e as fábulas, não devemos marginalizar a literatura infantil regional, como os mitos e lendas indígenas, os contos brasileiros reunidos por Câmara Cascudo, Silvio Romero e Henriqueta Lisboa e toda a bagagem que trazemos com a tradição oral da cultura brasileira (as parlendas, as cantigas de roda, os brincos e trovas). Além disso, não podemos nos esquecer da variedade de gêneros textuais da literatura infantil, que comporta lindos textos em verso de escritores como José Paulo Paes, Sérgio Capparelli, Francisco Marques, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Vinícius de Moraes, Ricardo Azevedo,
Jorge de Lima, entre outros, além dos cordelistas e cantadores muito valorizados pelas crianças.
Assim, o professor deve reconhecer que lançar mão dos textos literários de maneira diversificada no trabalho diário de sala de aula é manter acesos o devaneio e a fantasia inerentes à criança, e, para além disso, é preservar a capacidade da criança em imaginar e extrair do que é mais sutil elementos fantásticos e maravilhosos. Assim, esboçamos, a título de exemplo, a diversidade de gêneros e autores da literatura infantil para apresentar aos alunos:
TEXTOS EM PROSA
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ORAL : contos brasileiros, contos acumulativos, contos de fada, contos de aventura, fábulas, causos, mitos e lendas (brasileiros, gregos, africanos, asiáticos e outros) – aqui é importante retomar os mitos e narrativas brasileiros.
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ESCRITO: idem ao anterior em livros: Câmara Cascudo, Henriqueta Lisboa, Silvio Romero, Perrault, Irmãos Grimm, Esopo, La Fontaine, Sérgio Capparelli (contos chineses para crianças), Anna Soler-Pont (contos africanos para crianças) e outros, além de livros de autoria: contos de Andersen, Oscar Wilde, Monteiro Lobato, Italo Calvino e outros contemporâneos.
TEXTOS EM VERSO
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ORAL: parlenda, trovas (quadrinhas), fórmulas de escolha, réplicas, músicas (onomatopaicas e narrativas), bordões e nonsenses, adivinhas, poesias, cordéis, trava-línguas.
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ESCRITO: Henriqueta Lisboa, José Paulo Paes, Vinicius de Morais, Cecília Meireles, Sérgio Capparelli, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Ricardo Azevedo, Pedro Bandeira, Francisco Marques, Tatiana Belinky, Rosana Murray, folhetos de cordel.
IMAGENS
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imagens e ilustrações que rememoram e retomam personagens, trechos de histórias, narrativas.
IMAGENS E TEXTOS VERBAIS
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histórias em quadrinhos: Turma da Mônica, Turma do Xaxado, de aventura, Dom Quixote para crianças, e de heróis e super-heróis (Batman, Homem Aranha).
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livros só com imagens: Eva Furnari, Ana Maria Machado, Suzy Lee.
Se encontramos dificuldade para trazer a criança ao jogo literário e ao universo da fantasia, muito se deve às imposições da sociedade de consumo e à tendência de entregar as crianças aos suportes contemporâneos. Os livros de boa autoria e de alta qualidade literária vêm perdendo lugar para os livros de colorir, para os livros com adaptações simplistas dos contos clássicos ou até mesmo para os livros infantis de “auto-ajuda” produzidos por interesse de editoras em contemplar temas de forma pragmática (bullying, ecologia, direitos da criança). Em geral, esses textos acabam ocupando o lugar da boa literatura infantil, que, de certa maneira, pode também cumprir esse objetivo, porém, de forma mais indireta, lúdica e criativa, a partir de uma estética ou mesmo de um desenvolvimento temático menos pragmático que permitem a ressignificação do mundo e da realidade circundante da criança.
A criança contemporânea já nasce posicionada entre os diferentes suportes e recursos de expressão. Como analisa Dufour (2005: 120), “[...] o achatamento das crianças pela televisão começa muito cedo. As crianças que hoje chegam à escola são frequentemente crianças empanturradas de televisão desde sua mais tenra idade”. A literatura infantil não fica de fora desse novo fato antropológico, uma vez que sofre a apelativa influência do entretenimento infantil no mundo contemporâneo, em que as crianças precisam de uma forte carga de recursos visuais em detrimento do logos, da narratividade poética e literária. A interferência da indústria cultural e de seu elogio ao consumo acaba por rebaixar a qualidade poética dos livros infantis por meio de personagens estereotipadas, da banalização das temáticas, da reprodução de clichês e da ideologia dominante. Por isso, é papel da escola resgatar os textos da literatura infantil, incentivando o aprimoramento intelectual e a exploração de um mundo desconhecido à criança, a ser atravessado por novas descobertas, aventuras, fantasias, reflexões sobre a existência e origem dos seres e das coisas.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários Escritos. São Paulo, Rio de Janeiro: Duas cidades, Ouro sobre Azul, 2004, pp. 169-191.
DUFOUR, Dany Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTIL NOS DIAS DE HOJE
REGIONAL E UNIVERSAL
DIVERSIDADES
FORMA DE CONHECIMENTO DO MUNDO, DO OUTRO E DE SI MESMO
COMO UM DIREITO DAS CRIANÇAS
LITERATURA COMO DIREITO HUMANO