
"CANTE LÁ, QUE EU CANTO CÁ"
O grande Patativa do Assaré, em seu lindo poema cujo título nomeia este texto, demarca com clareza as diferenças entre o poeta do sertão e o da cidade, o poeta cultuado pela academia. Sem titubear, repete o refrão, marcando a separação que, podemos dizer, nasce da discriminação que o chamado cânone literário impôs ao longo dos últimos séculos. A poesia popular popular - mãe das literaturas todas, pois toda literatura se origina da oralidade - é de fato bem rejeitada tanto nas seletas nas seletas escolares
como nos estudos acadêmicos, a ponto de um pesquisador como Paul Zumthor afirmar que o preconceito logocêntrico (que põe o mundo da escrita em primeiro plano e a partir dele traça seu divisor de águas) cunhou esse termo com uma palavra que remete à escrita, à letra: “literatura popular”. Não entraremos nessa polêmica, pois também utilizamos o termo literatura popular, mas assumimos com clareza sua pertença ao campo da oralidade, embora, como se verá adiante, suas incursões pela escrita também façam parte de nosso plano de estudo (cordel, poemas populares publicados em livros, atualmente em sites etc.). Podemos dizer que a literatura popular ou de tradição circula e produz com a verve da oralidade, mas também circula nos suportes gráficos (e atualmente, com muito vigor, no suporte eletrônico).
Nossa visão aproxima-se da sustentada pelo pesquisador italiano Carlo Ginsburg[1], que vê uma relação circular “entre cultura douta e cultura popular” (Ginzburg, 2001, p. 23), ou seja, de tempos em tempos elas se aproximam, fecundam-se mutuamente e se afastam. No entanto, não vamos nos ater a essas distinções, mas partiremos do pressuposto de que a cultura, a literatura e as artes populares em sua circularidade com a “douta” são fundamentais ao ensino, por contribuírem com uma entrada mais significativa da criança e do adolescente na oralidade e na escrita.
A cultura popular é quase sempre corporal, pois cultiva a voz, a performance, a apresentação. Mesmo quando o poeta utiliza lápis e papel, como é o caso do grande poeta paraibano Zé da Luz, seu modo de compor se dá a partir da musicalidade, do ritmo e da memória, em seu vai-e-vem, até que o verso vá se compondo. Neste caso, a própria ortografia participa do processo, pois o poeta compõe o poema a partir de seu sotaque e este passa a ser fundamental no momento da declamação. Vejamos o belo poema, “A Cacimba”
[1] Ginzburg, C. “Estranhamento: Pré-história de um procedimento literário. In. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, [pp. 15-41]
Tá vendo aquela cacimba
La na bêra do riacho,
Im riba da ribanceira,
Que fica assim, pru dibaxo
De um pé de tamarineira.
Pois um magote de môça
Quage toda manhanzinha,
Foima, assim, aquela tuia
Na bêra da cacimbinha
Pra tuma banho de cuia
Eu num sei pru que razão,
As águas dessa nacente,
As águas que ali se vê,
Tem um gosto diferente
Das cacimba de bebê
As águas da cacimbinha
Tem um gôsto mais mió
Nem sargada, nem insoça...
Tem o gostim do suó
Do suvaco dessas moça...
Quando eu vejo essa cacimba,
Qui inspio a minha cara
E a cara torna a inspiá,
Naquelas águas quiláras,
Pego logo a deseja...
Desejo, pra que negá?
Desejo ser um caçote,
Com os óio dêsse tamanho
Pra ver aquele magote
de moça tumando banho.
A poesia popular mantém traços da gênese do verso, quando este era composto para o canto ou cantado e composto ao mesmo tempo. Não é por acaso que no Nordeste brasileiro há certa confusão entre poeta popular, cordelista, repentista, embolador, compositor de música do sertão, pois na verdade todos estão nessa esteira da origem da poesia, mesmo o cordel, que conta com suporte gráfico (o libreto), seu processo de composição leva em conta a declamação, pois em geral seu acontecimento se dá na feira, nas praças, quando seus textos se multiplicam na memória das pessoas. Não raro, o vendedor de cordel é um cego ou mesmo analfabeto, que simula a leitura a partir de sua declamação de memória. Resumindo, o poeta popular compõe a partir dos ouvidos, por isso valoriza o ritmo, a métrica, a rima e a estrofação em seus diferentes estilos e ritmos.
Para o nosso propósito educacional e formativo, convém delinear uma abordagem com dois caminhos:
1. Os textos sem autoria – agrupam-se aqui os gêneros que a tradição vai joeirando e peneirando ao longo do tempo, em cujos textos podemos perceber com clareza a força da função poética e as estruturas da narrativa. Desde uma cantiga de ninar às contações de histórias, passando inclusive por poemas cujas origens se perdem nos tempos medievais (veja alguns exemplos na apostila de textos orais no link práticas: “Xácara da Bela Infanta”, “Romance de Clara menina e Dom Carlos de Alencar”, “O pai que queria casar com a filha” )
2. Literatura de autoria – como este poema de Zé da Luz, que registramos acima. No Brasil, temos uma infinidade de autores, desde cordelistas como o grande Leandro Gomes de Barros a outros mais oralistas, como os que foram registrados nas coletâneas “Cantadores”, de Leonardo Mota (editora Itatiaia), ou prosadores cujos nomes se tornam conhecidos por registros mais contemporâneos, como Geraldinho Nogueira (pode ser visto e ouvido no youtube).
No conjunto desses textos sem autoria do item 1, temos muitos gêneros que favorecem a alfabetização - por dois motivos: (1) por reforçarem a memória, potencializando estruturas de narrativas e facilitando a aceitação de elementos estéticos (ritmo, métrica, rima, estrofação, paralelismos etc.); (2) por trazerem temas que mexem com fantasia da criança, favorecendo entusiasmo suficiente para a entrada mais apaixonada da criança no universo da literatura e das artes em geral. Temos esses textos como a base da leitura fluente e significativa. E acreditamos que desde a creche, passando pela educação infantil e entrando pelo ensino fundamental, eles constituem a base tanto da boa leitura como da produção textual.
Uma narrativa mitológica, por exemplo, é capaz de ativar na criança um posicionamento subjetivo de curiosidade, de prontidão para aprender os mistérios da vida e da morte – muito provável que é por essas narrativas que muitos alunos desenvolvem o gosto pelas ciências e pelos estudos em geral. Do mesmo modo, os textos em versos (parlendas, parêmias, contos acumulativos em versos etc.), os ludismos (trava-línguas, pegadinhas rimadas, adivinhas etc.) reposicionam a criança diante da palavra, do verso, da frase. Como jogam com os sentidos, com os significantes, oferecem oportunidades de a criança esvaziar os significados habituais das palavras e ir em busca de outros.
Nesse sentido, a poesia popular sem autoria (textos da tradição popular) nada perde para a poesia de autoria, pois ativa o senso estético até com mais facilidade. Poetas para a infância, como Ricardo Azevedo, José Paulo Paes e outros, em geral, constroem seus poemas a partir dos gêneros poéticos da tradição infantil (cantigas, parlendas, adivinhas).
Do mesmo modo, a literatura popular de autoria também faz grandes efeitos nas turmas do Ensino Fundamental II e até mesmo no Ensino Médio. Cordéis trágicos ou relatos de episódios da história (ciclo do Cangaço, por exemplo), poemas de Patativa, Zé da Luz, Cego Aderaldo, Pinto do Monteiro e outros entusiasmam adolescentes sobretudo quando se lhes devolve a verve original, ou seja, a força da declamação, a voz do poema. Um poema como “Triste Partida” de Patativa do Assaré, além de trazer o drama do migrante nordestino, infunde, com sua tristeza, a solidariedade em relação à dor do outro. São educativos por excelência – podem ser usados em várias disciplinas (Língua Portuguesa, Geografia, História, Ciências). Ouvir uma história de Geraldinho Nogueira – esse Mister Been do oral! - permite ao aluno um jogo interessante de textualização de experiências vividas – como histórias cômicas, poderíamos classificá-las no gênero “patacoada” (histórias que ocorrem com o próprio narrador ou com gente de seu grupo imediato, nas quais os personagens se metem em trapalhadas muito próximas às do grande cômico inglês). Já fiz a experiência de pedir produção de textos aos alunos a partir da audição de uma das histórias de Geraldinho Nogueira, o resultado foi excelente, os textos ficaram maiores, ganharam mais coesão e sentido (a proposta era narrar uma história, uma patacoada acontecida, como faz Geraldinho, enfatizando os detalhes para que tudo fique mais engraçado). Outra surpresa que o professor pode ter é o retorno de atividades a partir do cordel, quando se pede ao aluno para declamar várias vezes um texto e depois compor outro a partir do ouvido, aproveitando as ressonâncias do poema que declamou.
Para encerrar esse texto, gostaria de quebrar um pouco da dicotomia proposta pelo mundo canônico, cuja oposição acaba sendo reafirmada pela resposta de Patativa (título deste texto) : O que se cantou lá, que se recante aqui dentro da educação. Precisamos de tudo da literatura popular, desde sua aparente e cativante ingenuidade a seus temas entusiasmantes, passando, é claro, pelos grandes gênios dessa arte.
Neste campo da literatura e da cultura popular, os folcloristas e organizadores de coletâneas são imprescindíveis. Abaixo, sem ser exaustivo, apresentamos alguns :
Sílvio Romero, Affonso Arinos, Coutinho Filho, Cavalcanti Proença, Leonardo Mota, Câmara Cascudo, Amadeu Amaral, Cornélio Pires, Henriqueta Lisboa.
Vale a pena pesquisar também as coletâneas publicadas na coleção Reconquista do Brasil, publicado pela Editora da USP – EDUSP e Editora Itatiaia. Outra coleção recente e importante é a da Editora Landy, que traz contos de fadas de muitos países.
Atualmente há na Internet muitos sites que compilam poetas populares e gêneros da cultura popular em geral, vejamos alguns:
http://www.folcloreolimpia.com.br/
Site excelente, que reúne contos, causos e outras narrativas, além de muitos outros gêneros da infância (cantigas, fórmulas de escolha, adivinhas etc.)
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Além de ser um ótimo site de literatura, traz uma seção excelente de poesia popular, com coletâneas dos grandes poetas nordestinos.
http://www.folclore-online.com/literatura/menu.html
Site português com coletâneas interessantíssimas das diversas regiões de Portugal.
http://jangadabrasil.com.br/revista/setembro82/links.asp
Site riquíssimo em narrativas folclóricas.