
METODOLO(R)GIA
TRATA-SE, ENTÃO DA WHOLE LENGUAGE DE GOODMAN E SMITH?
PRIMEIRA PERGUNTA
Em vez de perguntar qual é melhor metodologia para alfabetizar e ensinar a leitura e a escrita, como se estivéssemos em uma loja escolhendo a melhor mercadoria, não seria mais adequado iniciar as perguntas pela nossa realidade educacional? Muito provável que perguntas sobre nossas escolas, nossos alunos, nossos professores vão nos dar condições para pensar para além das metodologias. Talvez, nesse exercício, possamos perceber que esta metodologia dá conta de alguns aspectos, aquela dá dar conta de outros e que nenhuma delas e mesmo uma embutida na outra teria o poder de recobrir os fenômenos que encontramos no cotidiano da educação brasileira. Vamos iniciar esse exercício? Vamos ver o quanto metodologias e mesmo as concepções são cobertores curtos para um corpo grande? Na minha cidade natal, um cobertor curto, que não cobre direito o corpo era chamado de ”peleja”, a pessoa se aquecia não pela eficiência do cobertor, mas pelo exercício físico de ficar “pelejando” para se cobrir.
Do total de alunos ingressantes nas turmas de primeiro ano de sua escola, quantos saem no terceiro ano ou no final do ciclo I (quinto ano) lendo pra valer? Com boa fluência e compreendendo texto de boa extensão (um livrinho, um conto, uma poesia compatíveis com a idade)?
Seria muito legal que sua equipe de trabalho soubesse responder essa pergunta com o máximo de precisão possível. Nas avaliações nacionais (Prova Brasil 2011/2013), temos resultados que dão o que pensar. Podemos analisá-los e compará-los com os de sua turma. Sua escola, se foi avaliada tem os resultados no portal do INEP, é só baixá-los e compará-los. Vejamos os resultados gerais para o final do Fundamental I:
Tabela 1:
Distribuição Percentual dos Alunos do 5o. ano do Ensino Fundamental por Nível de Proficiência (2011)
Tabela 2:
Distribuição Percentual dos Alunos do 5o. ano do Ensino Fundamental por Nível de Proficiência (2013)
O nível 4, em destaque, é a média mínima estipulada pelo Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE e pela ONG Compromisso Todos pela Educação (BRASIL, 2012), que demarca a proficiência mínima necessária ao prosseguimento dos estudos no Fundamental II e Ensino Médio. Abaixo do nível quatro, que significa menos de 200 pontos, figuram os leitores que não poderiam contar com os recursos da escrita como instrumento de aprendizagem. Os somatórios dos três níveis iniciais de cada ano revelam: em 2011, 59,98%; em 2013, 60,14%, ou seja, a PB diz que mais da metade dos alunos da escola pública brasileira não reúne condições para prosseguirem seus estudos a partir do sexto ano de escolarização (início do Fundamental II).
Pensando a partir desses dados, podemos formular algumas perguntas interessantes:
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Por que chegamos a este estado de coisas? Mais da metade dos alunos sem reunir as condições básicas de leitura e escrita para continuar seus estudos é um fenômeno grandioso, não?
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Como devem ter ocorrido as aulas durante esses cinco anos? O que fizeram esses alunos durante esse longo período?
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E os quarenta por cento restante, os que conseguem dominar a leitura, como conseguiram isso? Mais influências da escola ou mais das famílias?
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Podemos pressupor que os alunos tiveram no mínimo cinco professore(a)s ao longo desses cinco anos de Fundamental I?
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Essa(e)s professore(a)s constituíam um grupo bem coordenado? Constituíam uma equipe que pensava no problema e tentava estratégias para enfrentá-lo? Ou a progressão desses alunos ao longo do fluxo se deu ao “Deus dará”?
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De que estratégias essa(e)s professore(a)s lançavam mão? Todos seguiam a mesma metodologia, a mesma concepção? Que metodologias ou concepções estavam em jogo?
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Possivelmente essa(e)s professora(e)s receberam formação contínua, assumiram projetos de governo (“Ler e Escrever”, PNAIC etc.) – eles ajudaram em alguma coisa? Quais seriam os problemas desses métodos?
Analisando documentos do Ministério da Educação e das redes públicas do estado e da cidade de São Paulo, temos notado influências que privilegiam, enquanto metodologias ou concepções de ensino, o construtivismo e o sociointeracionismo – ambos perpassados também pela concepção de gêneros do discurso (ideias de Bakhtin, relidas por alguns educadores europeus, Bronckart, Swnewly, Dols, – com podemos constatar nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN e nos livros didáticos que circulam atualmente).
É muito comum também ouvir professores falando que trabalham com “a diversidade de gêneros” e no cotidiano constatarmos mesmo a presença de diversos gêneros do dia a dia contemporâneo (rótulos e embalagens de produtos, logomarcas, publicidades, carta, bilhete, receita de culinária, textos instrucionais, relato de experiências etc.). Na Internet é possível encontrar sites que ensinam a alfabetizar a partir de logomarcas (S de Sadia, M de Macdonalds, I de Itaú etc.) – tudo isso se equilibrou também com a noção de letramento, de origem anglo-saxônica (ver link LETRAMENTO).
Do mesmo modo, podemos ler e ouvir em artigos, livros, projetos e cursos de formação as justificativas para a adoção dessas ideias e práticas. Em geral, os formadores costumam contrapor tais ideias ao que chamam concepções e/ou metodologias tradicionais. Em cada setor do ensino de Língua Portuguesa apontam uma metodologia do passado e nela localizam seus principais defeitos; vejamos:
- Alfabetização: acusam as práticas e métodos sintéticos em que prevaleciam a preparação para a escrita (coordenação motora simples, domínio dos espaços do caderno: linhas, páginas, separações de bloco de texto etc.), pôr em primeiro plano a conjunção entre os elementos menores da fala e da escrita (correlação fonema-grafema, domínio da sílaba, reconhecimento de palavra etc.), homogeneização da turma e a competitividade (alunos fortes, médios e fracos em turmas ou fileiras separadas), a reprovação etc. Mesmo a metodologia analítica (que historicamente se contrapunha à sintética), que afirma estratégias mais descendentes (que partem de elementos maiores, textos, frases, imagens para daí inferir os menores: sílabas, fonemas e letras) também receberam as mesmas críticas. Para o construtivismo e o sociointeracionismo emergentes na década de oitenta, essas metodologias tinham o mesmo fundo comum: não respeitavam as crianças, partiam de uma visão genérica da infância e homogeneizavam as turmas, além de estarem pautadas em concepções mais estáticas de língua, linguagem e mundo. Mesmo a combinação das duas metodologias (método eclético ou metodologia sintético-analítica), segundo tais críticos, mantinha os mesmos pressupostos, ou seja, preparavam um ensino que NÃO levava em conta os potenciais da criança, o que ela já sabe, sua cognição, sua inserção social e ainda suas potencialidades de sociabilização e de interação no ato da aprendizagem etc.
A partir deste corte, começam a circular no ensino formulações como estas:
- A criança constrói o conhecimento, pois já traz hipóteses, ainda que provisórias, sobre a escrita, a língua e a linguagem;
- A criança está imersa no mundo da escrita – está sob efeito de um processo de letramento de seu meio – portanto, já traz para a escola um cabedal considerável que pode ser vir de ponto de partida.
- A escola tem que garantir os direitos de cidadão da infância, portanto cabe ao ensino valorizar tudo o que pode contribuir para a formação desse cidadão – por exemplo, ler e interpretar textos de seu meio seria uma contribuição concreta para a formação cidadã.
- A criança tem direitos à aprendizagem, logo, em vez de falar em objetivo de ensino, fala-se em direito, embora, a julgar pelos percentuais que das últimas avaliações, os gestores das escolas e dos sistemas de educação não são punidos por não conseguirem garantir esses direitos);
- O conceito “conteúdo” estaria ligado às metodologias tradicionais, seria mais interessante falar em “habilidades” e “competências” - tudo isso, está bem afinado nos documentos dos governos, nos pressupostos e caracterizações das avaliações do MEC, mas muito pouco inserido em sala de aula.
- Esse educar para a cidadania e a ideia de competência se reforçam mutuamente e se estendem pragmaticamente, pondo em relevo a função do ensino, que seria a de preparar a pessoa para a vida (entenda-se “vida” como mercado de trabalho);
- Os gêneros do discurso, nesse sentido, a transposição forçada dessa teoria se adaptou bem a toda essa lógica, pois ao classificar a diversidade de textos existente, indo além das antigas classificações que se limitavam ao campo literário, deixam mais claramente à disposição textos aparentemente úteis ao cidadão, textos ligadas a um saber-fazer: ler manuais de produtos tecnológicos (textos instrucionais), formulários, rótulos de produtos, reportagens, notíciais e outros gêneros já listados acima.
Bem, mas com tudo isso, os índices continuam lá firmes, intocáveis, mas independentemente deles os intelectuais que influenciam o governo (por exemplo, o Programa Nacional do Livro Didático) comemoram o “grande avanço” nas concepções de ensino:
Assim, as práticas de uso da linguagem, isto é, as atividades de leitura e compreensão de textos, de produção escrita e de produção e compreensão oral, em situações contextualizadas de uso, devem ser prioritárias nas propostas dos livros didáticos. (p. 18) (grifos nossos) (GUIA DO LIVRO DIDÁTICO – LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO/LINGUA PORTUGUESA 2010)
Talvez, uma das razões do problema esteja no modo generalizado como aplicam o que aprendem nas teorias e na leitura dos autores de países do primeiro mundo – por exemplo, autores suíços, franceses, ingleses, americanos dizem tudinho o que os brasileiros precisam fazer independentemente das culturas e diversidades que sustentam o país. Por exemplo, sem conhecer muito a infância, enfiam lá direitos de cidadão adulto e tiram da criança a oportunidade de potencializar suas fantasias com textos literários de boa qualidade. Fazem a coisa indiscriminadamente, nas aulas de Língua Portuguesa, das sérias iniciais às finais do Ensino Médio, esse conjunto de gêneros “úteis” (talvez para o adulto) vem ocupar o lugar dos gêneros literários, das narrativas e da função poética – que são gêneros que aceleram a fantasia da criança e potencializa a leitura de textos de maior extensão.
O(a)s professora(e)s parecem gostar, pois não é preciso mais se preocupar com textos longos, ler livros literários, é só pegar uma receita, um rótulo, uma pequena notícia que estaremos trabalhando diversas habilidades em qualquer faixa etária.
Achamos que não! Entretanto, aprofundar a pesquisa sobre a realidade da escola brasileira é uma urgência para combater as metodologias que chegam cheias de euforia e prontas para “zerar índices!” – como disse um defensor do método fônico. Pesquisas longitudinais, qualitativas, com intervenções a partir do chão da escola são fundamentais. Escapar das metodologias restritivistas (aquelas, como a construtivista e o método fônico, quando afirmam que “ISSO PODE!” contra o “ISSO NÃO PODE”), que precisam serem postas sob suspeitas. Interessante também prestar atenção na honestidade das pesquisas e avaliações, se os pesquisadores apresentam as “diferenças” de forma realista (aqueles percentuais que destoaram, não se ajustaram à pesquisa).
Neste mesmo contexto, é preciso desconfiar dos cursos de formação que passam eficientemente a teoria aos professores e deixam a eles o “simples detalhe” de fazer a transposição didática, a aplicação. Um curso de formação tem que ser indutivo, partir das questões reais da escola brasileira e não sufocar os problemas dos professores com uma teoria, uma metodologia infalível. Portanto, aquelas incômodas perguntas que os professores fazem e que os formadores consideram impertinentes (quando dão de ombros e dizem que “não estou aqui para dar receita”), devem dar a tônica do curso – coisas como estas: “tento aplicar a diversidade de gêneros em meu trabalho, utilizo textos úteis do universo de letramento dos alunos, faço aulas bem interativas, proporcionado inclusive a oportunidade para que o aluno que sabe mais interaja com o aluno que saiba bem menos (para que criem ali uma Zona de Desenvolvimento Proximal e eu também entro nessa ZDP para ampliá-la), faço diagnósticos constantemente, levando em conta as hipóteses de escrita, enfim, tento cumprir um programa sociointeracionista-construtivista completo, mas mesmo assim, chego no final do ano com 20% ou 30 que não conseguem ler (pré-silábicos, silábicos-alfabéticos) e mais uns 30% que leem silabando (alfabéticos não fluentes?) e há ainda um tanto que lê, mas não consegue compreender um texto mais longo, apesar de apresentar da fluência...E, aí? O que mais posso fazer?
É neste “E aí?” que começa a nascer uma método(r)logia ou concepção mais aplicada de ensino (talvez mais Brasucas, mais contemporâneas!), que se quer não-restritivista.
Bem, mas pode ser que a tentativa morra logo na pergunta seguinte: o sujeito da pergunta “o que mais posso fazer?” é o pronome “Eu”. A pessoa isolada, sozinha, por mais bem intencionada que possa se apresentar, também nada pode! E, se puder, a coisa não vai subsistir por muito tempo. Pensemos em “o que mais nosso grupo poderia fazer?”
Com certeza, mas sem balelas e democratismos! Trabalho coletivo que implica a potência e os limites da equipe. Não é por apostar no “coletivo” que vamos dotar o grupo de poderes mágicos. Ele tem limites e tem que gritar, espernear, juntar vozes no sindicato para dizer aos quatro ventos quais são esses limites. Nós, nosso grupo (o GOLE) vimos uma parte desses limites em pesquisa brasuca, longitudinal, de quatro anos de duração, em três estados brasileiros e podemos afirmar:
- Pedagogos isolados não fazem verão, sobretudo quando acreditam nos poderes mágicos de metodologias e que um professor por turma (1 x 25; 1 x 30; 1 x 35), com a porta de sua sala fechada, lá, sozinho com seus alunos, seja o único modelo de trabalho que existe na face da educação;
- É preciso mudar esse modelo e meter na cabeça que a entrada da criança brasileira na escrita é o momento fundador de toda a educação que vem depois. Se a criança aprender a ler e a escrever com desenvoltura e eficiência, o prosseguimento de seus estudos fica bem mais simples. Se a entrada na escrita é o momento fundador da educação, tem que ser bem cuidada, constituir-se em um projeto especial, com estratégias, avaliações, programações capazes de chegar nos detalhes, nas diferenças, nas singularidades para garantir que pelo menos noventa por cento da turma consiga reunir as condições de leitura e escrita para prosseguir seus estudos. O momento fundador tem que ser visto como DESAFIO.
- Um trabalho em equipe multidisciplinar, que conte com um número de profissionais superior ao número de turmas – podemos pensar em número, mas para não encarecer muito e inviabilizar a educação, por enquanto, bastaria pôr mais um professor para cada duas turmas (o modelo seria: 3p X 2t). Esse profissional a mais viria de outra área/disciplina, mas com formação em educação. Não seria um coordenador que fica em sua sala, na posição de orientador e cobrador de professores. Ele estaria implicado diretamente no trabalho com as turmas, seria uma espécie de elo entre turmas, dedicando-se sempre aos cuidados com as singularidades, as diferenças. Sua missão maior seria a de conhecer mais profundamente os motivos e questões que os alunos em desnível apresentam e de, coletivamente, buscar soluções (novas estratégias, novos materiais didáticos) para as situações.
Pode-se notar que enfatizamos a organização do trabalho e a colocamos acima das “metodologias infalíveis” e das “concepções democráticas”, mas é claro que o método, a técnica, aliados a uma boa ética, são fundamentais.
PONTOS
1. A formação do grupo de professores deve estar acima de qualquer metodologia, deve permitir que se enfrente a teoria da vez e se tenha a coragem de dizer que ela funciona parcialmente – que não passa de uma “peleja”;
2. Estudar a história e a realidade brasileiras é fundamental e pode colocar um divisor de águas: “o que é bom para os EUA e Europa pode não ser bom para o Brasil”. Se na Finlândia a escola é assim ou assado, transpor o modelo para o Brasil pode ser uma “finlambança” ou seja, antes de importar metodologias, observar primeiro a quantidade de tentativas frustradas.
3. Estudar e compreender bem a relação entre língua e escrita, tentando discernir com clareza todos os componentes do processo de ensino deste setor: discurso, língua, fala, oralidade, escrita, leitura, produção de texto etc. Ou seja, é preciso estudar linguística (mas sem acreditar nas teorias fortemente enraizadas nela, que focam apenas a correlação grafema-fonema e o processo de alfabetização separado de outros elementos que o constituem: a subjetividade, a correlação complexa entre oralidade e escrita).
4. Estudar e compreender bem a infância, a criança, o adolescente mas levando em conta certa complexidade ao tratar esses conceitos. Em primeiro lugar é importante saber que não há apenas uma visão de infância, a sua, a do professor. Imagine, por exemplo, as concepções de infância da indústria de entretenimento, de jogos eletrônicos, de roupas, de brinquedos – todos assediando a infância para tornar as crianças seus consumidores fiéis. No link “|Infância” desenvolvemos uma reflexão sobre este conceito. Inevitavelmente, ligado a esse conceito temos também o conceito de subjetividade
5. Aprender a trabalhar em grupo, a partilhar responsabilidades, a assumir metas e objetivos claros. Imaginemos que a expectativa para alfabetizar um percentual de crianças era de 90%, mas só se atingiu 70%, a responsabilidade não será deste ou daquele professor, mas sim da equipe (imaginamos que se deva nela incluir toda(o)s os professora(e)s do primeiro ao terceiro ano – primeiro ciclo). Essa equipe tem a responsabilidade e a obrigação de entregar as turmas para a equipe do ciclo II, juntamente com um relato (escrito e oral) esclarecendo o que aconteceu durante o processo, desde uma avaliação completa de todos os alunos, acompanhada de relatórios dos casos que demandaram maiores cuidados, a uma sugestão de cuidado e atenção com esses alunos;
6. Conhecer bem o regime definido para a sua escola. Para o Brasil foi definido o regime de ciclo, mas pelo que se vê, trata-se apenas de um rótulo novo sobre um velho produto - a escola tem de fato ciclos temporais e progressão continuada, mas o funcionamento básico ainda é de escola seriada. No ciclo, o acompanhamento do processo é fundamental – por isso é que o trabalho em equipe com responsabilidades bem definidas passa a ser central! Infelizmente, na escola brasileira o que funciona do ciclo é a progressão continuada, sem acompanhamentos da heterogeneidade, das diferenças. Aprender a acompanhar os alunos que apresentam desnível desde o início, criar métodos para isso, passa a ser um desafio do grupo. Nosso grupo, o GOLE, fez isso e descobriu estratégias importantes para que de fato o acompanhamento seja eficiente, mas infelizmente muitas delas dependem de uma nova política educacional. Uma constatação clara já mencionada no início deste texto é que a relação número de alunos/número de professores precisa ser mudada. Repetimos: com um professor por turma de 30 alunos isolado em sua sala não se faz regime de ciclo. Brigar por isso também é desafio da equipe.
7. Reunir predisposição para alternar estratégias, sobretudo quando a situação de uma turma ou grupo de alunos não vai bem. É aqui que uma metodologia restritivista pode pôr tudo a perder, pois incitará o professor a continuar insistindo mesmo após ter constatado que o esquema não funciona com este ou aquele aluno ou grupo.
8. Estudar uma possibilidade de encontrar caminhos alternativos em equipe. Nosso grupo encontrou alguns. Vamos expor abaixo.
9. Compreender a importância da estética e de sua relação com uma ética. Ao comprometer crianças em um trabalho pedagógico, temos que levar em conta que estamos plantando sementes definitivas, portanto temos que nos preocupar em sermos justos. Quando uma professora remete seus alunos a se alfabetizarem com propagandas, rótulos de produtos, logomarcas etc. deverá saber que está apontando mais para o consumismo do que de fato para a explicitação do que é justo e direito para o cidadão. Do mesmo modo que, ao contemplar a heterogeneidade da turma, deverá levar em conta que os que apresentam mais dificuldades, que não trouxeram bagagens de suas casas ou da Educação Infantil, são os que mais precisam de atenção especial – é por isso, para se posicionar diante dessa diversidade, que recomendamos um trabalho em equipe, coletivo, que busque estratégias que considerem as diferenças.
Ao posicionar a corporalidade em primeiro plano, nosso grupo buscava também essa justiça: um programa suficientemente inclusivo, capaz de contemplar tanto as crianças que tem dificuldades como aquelas que se destacam pela facilidade. A corporalidade traz um campo de textos e cultiva uma estética suficientemente rica e capaz de contemplar todos esses segmentos, que vai desde a possibilidade de a criança se identificar com personagens de narrativas e neles e nelas encontrar elementos importantes tanto para a sua fantasia como para a sua memória.Desenvolver bem a narrativa, ser capaz de recontá-las e de recriá-las é nossa principal forma de robustecer o psiquismo da criança e de armá-lo no sentido da leitura e da escrita. Do mesmo modo, desenvolver o gosto pela palavra esperta, pela função poética e ter prazer em brincar com textos e palavras a partir desses elementos estéticos (rima, ritmo, homofonias, repetições, alegorias, personificações etc.) é uma forma de unir o ético ao estético. Por quê? Ora porque esta estética, o cultivo desses agrupamentos de gêneros, é também bastante inclusivo, pode contemplar todas as diferenças. Uma criança que não narra, que não consegue acompanhar narrativas, tem que ser cuidada neste quesito, precisa aprender a ouvir a histórias e a recontás-la. Essa é a forma de começar a equipará-las as demais. Criar para elas uma ambiência de textos esteticamente ricos e potencializadores de suas fantasias é a melhor estratégia para trazê-las para os livros, para a escrita e consequentemente alfabetizá-las com eficiência. Simplesmente submetê-las a processos de recuperação por repetição de famílias silábicas sem entusiasmá-las, sem despertar suas potencialidades, pode significar a manutenção das diferenças em relação aos demais alunos, pois essa alfabetização pragmática, muito calcada no domínio dos elementos menores da língua e da escrita, pode gerar somente a alfabetização funcional (ler palavras, frases curtas com sofreguidão). Para nós, o que está em primeiro plano é o entusiasmo das crianças com essa ambiência estética, é por aí que vai ocorrer o mais importante: o reposicionamento subjetivo da criança diante da escrita.
Em nossas pesquisas assumimos uma perspectiva que tenta compor uma combinatória de elementos (daí a brincadeira com a expressão metodo(r)gias para compreender e sustentar a entrada da criança na leitura e na escrita). Daremos a seguir umas pinceladas rápidas sobre esses elementos, pois, neste site, eles vêm sendo abordados em muitas páginas e links.
Desde antes de a criança nascer, sua subjetividade já vem sendo composta (daí que não existe SUJEITO ATIVO e SUJEITO PASSIVO em relação dicotômica): seus familiares e sua comunidade falam uma língua X (ele não escolhe sua língua), os desejos de seus pais também já estão postos (vai ser médica, marceneiro, bailarina, corinthiano etc.), é o primeiro filho ou é o sétimo (Lobisomem?) etc.
Ao nascer, sua mãe e seu pai, além das cobertas, vem recobrir seu corpo com linguagem. Seu choro, que já é expressivo desde o primeiro grito, vai ser “atendido” pelos pais, que para sossega-lo tenta com teta, mamadeira, cobertas, balanço e....língua materna. Aqui temos a fundamental importância do manhês – que é aquela língua estranha que as mães (atualmente os pais também fazem) usam para falar com bebês, que é musical, rítmica, com abrandamento das consoantes mais duras e que também é entremeadas por cantigas de ninar. Com essa língua esquisita a mãe (ou o pai) conseguem um grande MILAGRE: estabelecem um laço forte entre o ESCUTAR e o OLHAR. A criança escuta a voz da mãe e começa a associá-la ao momento de mamar, de ter carinho, enfim, os objetos externos que estão diante de seus olhos vão ganhando clareza ao som da voz materna.
À medida que os dias e meses passam, a família vai incrementando esse repertório, introduzindo novas cantigas, novos brincos e brincadeiras, além de histórias e outras brincadeiras – em geral, todas desempenham suas funções: estabelecer a relação escuta-olhar (e vice-versa), controlar a ansiedade e agitação corporal, permitir que a criança consiga ficar sozinha e a mais importante: que entre na língua a partir de uma estética, de posicionamento expressivo e não apenas com a fala cotidiana comunicativa, denotativa. O manhês e sua extensão (cantigas, ludismos linguísticos, histórias etc.) constituem, para nós, o que chamamos CORPORALIDADE. Aqui a presença da palavra CORPO não se refere apenas ao corpo físico, biológico, mas a um CORPO PSIQUICO E SOCIAL, que funciona no psiquismo e nas relações como base para o corpo biológico. Por exemplo, imagine a criança de dois, três e até cinco anos que insiste em fazer cocô na roupa, na cama, na sala, no sofá. O que pode estar acontecendo aí? Não sugere um desequilíbrio entre esse corpo biológico (que age, que anda, procura um lugar e faz seu cocô) e o corpo psíquico que ainda não encontrou sua calma, sua estabilidade, sua posição em relação aos pais, ao outro? Não estaria faltando CORPORALIDADE aí, mais emoção, carinho e estética nas interações entre pais e filhos?
Ora sabemos que no cotidiano de uma criança com seus pais, babás, creches, além da corporalidade, da linguagem mais estética, existe também a fala cotidiana, a fala comunicativa e que as duas até se misturam, pois muitos pais e professores usam linguagem expressiva até mesmo para mediar situações práticas da vida (comer, vestir-se, organizar o material escolar etc.). A linguagem expressiva, os gêneros da infância, o conjunto de textos estéticos a que chamamos CORPORALIDADE (por que de fato é o que sossega o corpo e cria um novo corpo de linguagem para as novas situações estéticas) constituem o FUNDAMENTO de nossa proposta para a entrada da criança na leitura e na escrita, inclusive para os momentos da alfabetização (momentos formais em que a criança lida mais diretamente com os elementos da língua e da escrita). É partir dessa corporalidade que conseguimos juntar o ético ao estético, ou seja, nossas boas intenções, nossa conceito de justiça social, a uma estratégia de trabalho suficientemente inclusive e entusiasmante, capaz de levar o aluno a uma nova posição.
Praticamente todos as metodologias de alfabetização, bem como as concepções, filosofias e linhas que incluem a aprendizagem da leitura e da escrita em suas teorias, afirmam a posição de que a criança aprende a escrita por um cotejo com a fala cotidiana – veja-se, por exemplo, o mais recente livro de Magda Soares (2016), que faz uma grande revisão das teorias e afirma a sua posição:
Em síntese a alfabetização – faceta linguística da aprendizagem inicial da língua escrita – focaliza, basicamente, a conversão da cadeia sonora da fala em escrita. Neste sentido, é fundamental compreender a natureza linguística e cognitiva dessa conversão, por meio do confronto entre o processo de aprendizagem da escrita ao processo de aquisição da fala. (p. 38 – grifo nosso)
Em nossas pesquisas, encontramos elementos que nos mostram um outro cotejo ou confronto: O DOMÍNIO MAIS PLENO DA ESCRITA NASCE DE UM COTEJO ENTRE OS ELEMENTOS DE ESCRITA E OS DA CORPORALIDADE, ou seja, a língua mais estética, mais rítmica, mais propensa a constituir padrões e repetições que favorecem o cotejo e ao mesmo tempo entusiasma e reposiciona subjetivamente a criança. Percebemos que no próprio processo de alfabetização, no momento em que a criança começa a descobrir os elementos da escrita, ela pode se entusiasmar ou se contentar com o cotejo mínimo entre fala e escrita.
Acompanhando longitudinalmente alunos (do primeiro ao quarto ano), percebemos nitidamente que os que gabaritavam nossos testes, apresentavam desde cedo uma postura subjetiva entusiasmada com histórias, ludismos linguísticos, poesias, enfim, com a linguagem expressiva, ou seja, seus posicionamentos subjetivos não é com a fala e sim com a riqueza estética da corporalidade – essas crianças, desde o início de sua entrada na escrita aprendem a ler já expandindo seus potenciais literários e estéticos.
Admitimos sim que a fala cotidiana também oferece o seu cotejo, que também contribui com a alfabetização, mas não é ela que entusiasma, não é ela que faz a criança se posicionar, a aceitar, por exemplo, que seu corpo físico se aquiete (a leitura e a escrita exigem postura contida) e seu corpo psíquico, sua corporalidade, ganhe dinâmica. A criança que lê solitariamente um conto, um livro de história, está contendo seu corpo físico e dando asas ao seu corpo psiquico, ao seu avatar, que é muito mais poderoso, pois facilmente aceita viajar para terras distantes.
Não! A teoria desses dois autores é restritivista, ou seja, não aceita a lida com os elementos menores do código (fonema, sílaba, letra, palavra) e joga toda a ênfase na ideia de que se alfabetiza a partir do sentido dos textos, o que seria a tal estratégia descendente (topdow), ou seja, os sentidos permitem a criança descobrir os mecanismos da escrita e entrar na “leitura significativa”
Nossa perspectiva não só acha fundamental a lida com os elementos menores do código (processo de alfabetização) como também não se restringe à ideia de “significação”, de “significado” – para nós, como cultuamos a função poética da linguagem, o significante joga um papel fundamental no cotejo com a oralidade. Fenômenos como a HOMOFONIA, A ACROFONIA, RÉBUS, PALAVRA-VALISE, ANÁFORA, RIMA, O RITMO, FUNÇÃO NARRATIVA E TODO O REPERTÓRIO DE GÊNEROS ORAIS E LITERÁRIO, associados à compreensão e ao entusiasmo que os textos suscitam, permitem uma entrada dinâmica no mundo da escrita, incluindo aqui o período mais denso do processo de alfabetização – que se faz por cotejo a elementos estéticos da corporalidade e não à fala cotidiana
Esse agrupamento de gêneros que vem desde a primeira infância, que ajuda a compor a CORPORALIDADE, constitui para nós a primeira preocupação quando recebemos uma turma de alfabetização. Nosso primeiro diagnóstico é sobre essa x
corporalidade.
Desde o primeiro dia de aula costumamos observar a turma e fazer anotações sobre as performances de cada aluno nas atividades de corporalidade, sobretudo daqueles que destoam, que não brincam ou que brincam exageradamente pondo muito o corpo e quase nada de palavras, por exemplo: em uma brincadeira como o “Tumbalacatumba”, que as crianças repetem um texto e fazem a mímica de acordo com o sentido do texto, a criança não prestaria atenção no texto dito pelo professor e faria gestos aleatórios, agitados ou então se isolaria timidamente num canto. Outro exemplo: em uma contação de história a criança fica alheia (cuidado: muitas crianças se mostram aparentemente desligadas, mas quando se lhes cobra a narrativa, mostram que ouviram tudo) e ao tentar repetir a história não consegue concatenar minimamente a narrativa. Em geral, criança que não consegue recontar uma história que acabou de ouvir, apresenta dificuldades no processo da alfabetização e/ou na consolidação da leitura.
Claro que não é com ligeiras observações que se chega a uma conclusão se uma criança está apresentando dificuldades na corporalidade. É sempre necessário cruzar mais dados, observar outras situações, até que se pode fazer essa observação isoladamente com a criança (por exemplo, pedir a ela que reconte uma história ou que memorize o texto de uma adivinha e tente buscar a resposta ou ainda que tente brincar com um trava-língua, uma parlenda, enfim, todo o repertório oral que está envolvendo a turma (veja o link DIAGNÓSTICO)
Em nossas experiências temos notado que é muito difícil uma criança dominar a escrita fluente sem ter dominado esse substrato oral. Em geral, as crianças que avançam rapidamente na leitura fluente e significativa são as mesmas que trazem ou desenvolvem uma boa corporalidade. Por essas nossas observações com muitos alunos é que afirmamos que para aprender a escrita e usá-la prazerosamente de modo fluente é preciso cotejá-la a essa corporalidade e não apenas à fala cotidiana, que é fragmentária, que acaba se reduzindo a frases curtas muito dependentes de contextos e é esteticamente pobre.
Para nós ficou bem claro: o cotejo com a fala cotidiana mal produz aquele leitor mais pragmático, mais voltado à leitura de curto fôlego, à produção de textos calcada na fala (que em geral é de má qualidade) – vejam o artigo “A abordagem da oralidade e da escrita na escola a partir da tessitura interdisciplinar entre a psicanálise e a linguística”. Nele comparamos dois textos produzidos por alunos do final do fundamental I, um assumindo narrativas conhecidas (lidas e ouvidas) na forma de uma paródia, o outro tentando criar um texto a partir da fala cotidiana.
Claro que, se achamos a corporalidade como ponto de partida, temos que encontrar as dobradiças que fazem abrir as portas das outras modalidades de expressão. No caso, para facilitar, sintetizamos em três: a corporalidade, a transição oralidade-escrita (por meio da imagem, mas aqui considerada tanto na sua estática como em sua dinâmica, filmes, animações, jogos eletrônicos, sites etc.) e a leitura/escrita (levando em conta o jogo entre o ler e o escrever):
Bem, essa montagem que estamos fazendo aqui não deixa de ser uma metodolo(r)gia, pois procura articular elementos e conceitos para facilitar a montagem de um programa. Veja o programa montado pelas professoras da Escola de Aplicação da USP a partir dessas concepções.
Em outros textos (artigos, livros) e vídeos a (o) professo(r)a encontrará temas que se conjugam e dão uma ideia mais completa de nossas concepções. Há também um seção chamada PRÁTICA, Estratégias de Sala de Aula, onde se podem encontrar atividades prontas para o uso, em geral, elaboradas a partir dessas nossas concepções.
Um outro item essencial que exemplifica bem o que aqui escrevemos é AVALIAÇÃO/DIAGNÓSTICO, que mostra como fazemos sobretudo os diagnósticos do primeiro ano.
[1] Veja-se, por exemplo, a coletânea de Henriqueta Lisboa, que traz belas ilustrações em xilogravuras feitas por Ricardo Azevedo – aliás, está aí um autor muito interessante para professores e pais, que reatualiza com muita qualidade a tradição oral brasileira, recontando, recriando,
redesenhando etc.


METODOLOGIA BRASUCA É POSSÍVEL?
A “METODOGIA BRASUCA” APOSTARIA NO TRABALHO COLETIVO
PONTOS E QUESTIONAMENTOS PARA UMA METODOLO(R)GIA BRASUCA
A LÍNGUA, O CORPORAL E O ESCRITO
A NOSSA ESCRITA NASCE DA CORPORALIDADE, DA LÍNGUA ESTÉTICA E NÃO DA FALA COTIDIANA
A CORPORALIDADE TEM UM PAPEL ESSENCIAL
UMA DINÂMICA DA CORPORALIDADE PARA A ESCRITA, PASSANDO PELA IMAGEM
